quarta-feira, 23 de julho de 2014

NELLA CASA DI CORTO

Intro: Este texto é dedicado a todos os que sentem "o desejo de ser inútil" e por vezes se perdem no universo de Corto.
A quem não conhece este universo, recomendo a leitura da Fábula de Veneza. É uma boa porta de entrada.

A VIAGEM É A SUA CASA

O lar dos heróis românticos é a viagem.
Só encontram repouso no regaço de uma nova aventura.
Atravessando mundo. Um largo universo, uma infinitude de planos paralelos. Fantasias reais, para quem segue franqueando portas mágicas. Através delas, deambulamos nos meandros do labirinto imaginário do seu autor.
Veneza, Fevereiro de 2011. É inaugurada a “Casa di Corto”.
- Este é um porto encantado para qualquer marinheiro.
Em Março de 2011 visito Veneza na companhia da Catarina. Embora fosse um sonho há muito acalentado, poderíamos ter escolhido outro destino. A Catarina em criança já lá havia estado (pese embora de pouco ou nada se lembrasse).
Um dos momentos mais marcantes da viagem é a chegada ao destino.
Estava um dia de sol. Algumas nuvens arrastavam a sua sombra pelo solo.
Baralhados pelas confusas indicações, foi uma sorte acabarmos dentro do autocarro certo, à saída do Aeroporto Marco Polo.
 
Ficámos junto à porta de entrada. Estava lotado. E no meio daquela confusão, dei por mim a pensar no turista italiano que, havia uns tempos, fora assaltado no Metro de Lisboa, à minha frente.
Volvidos alguns quilómetros de encontrões e apertos, entre pessoas que entram e saem, tivemos direito ao primeiro vislumbre da sereníssima, suspensa no seio das águas.
Atravessada a língua de terra que constitui a “ponte” com o continente, desembarcámos na “Piazzale di Roma”. Tarecos às costas, rumo ao hotel, subimos a ponte “Degli Scalze” sobre o Grande Canal.
A quase ausência de ruídos mecânicos. Que espanto! Uma cidade sem carros. E as gôndolas – finalmente!
Ao planearmos os nossos passeios tornou-se evidente a dicotomia dos roteiros. A Catarina levava um pequeno guia com o “Top Ten" de Veneza. Eu pretendia refazer os passos de Corto na Fábula. Lá acabámos por chegar a um consenso, repartindo ou conciliando os percursos, conforme fosse o caso.
Veneza é um local memorável, mas melancólico. Carregado de genialidade pelas imensas obras que alberga e pelas almas dos seus autores, cujos fantasmas ora se evaporam, ora se dissolvem nas escuras águas dos seus incontornáveis canais.
Chego à primeira porta.
- Fecha os olhos. Abre agora a porta.
- Que vês?
- Uma mescla de gentes oriundas de civilizações distintas. No decorrer das eras, moldaram o lodo dos canais, transformando os alicerces de pinho em raízes da história universal. Delinearam as águas da laguna que a circunda com o contorno das lendas, construindo com a pedra das suas memórias, a cidade que "flutua" nas águas.
 
Na "Casa di Corto"

Transposto o portão, acedi ao pequeno jardim. Ao fazê-lo, sou sugado para um limbo. A realidade e o imaginário, tudo é leve e difuso. Não há princípio ou fim. No seu lugar, a perpétua continuidade.
Em frente, uma outra porta, no extremo oposto. O acesso via canal.
Ultrapassado o pequeno jardim, à esquerda, a porta de entrada da "casa". Lá dentro, um pequeno balcão, onde um rapaz nos recebe, dando as boas vindas.
Na entrada, espalhados pelas paredes do hall, pranchas, aquarelas e esboços originais de Pratt.
Nas salas seguintes, somos cumprimentados em silêncio por um conjunto de móveis e variadíssimos objectos. Descansam no pretenso porto de abrigo do intrépido marinheiro. A coisa inanimada, bem arrumada, denuncia na sua letargia, a ausência de propriedade. Sendo casa de muitos, aquela não é casa de ninguém.
- Este aventureiro nunca teve poiso certo!
Sussurra o seu pai ao meu ouvido.
- Pai?
Será que Corto, é mesmo filho de um marinheiro da Cornualha e de uma cigana de Gibraltar?
Saí, voltando no dia seguinte.
 
Deixara encomendado o livro “Corto Sconto”, um guia dos percursos de Corto por Veneza. Esta obra dá-nos a conhecer uma Veneza menos turística, mas não menos bela e não menos carregada de história. Não se limitando a indicar vários locais e a sua ligação a Corto, relata também, a história e as lendas que estes encerram.
Um dos autores do livro é Guido Fuga. Antigo colaborador e amigo do "maestro", é parte activa no projecto “Casa di Corto”. A recolha do livro, coincide com a presença deste simpático sexagenário.
Dispõem-se a ter connosco uma conversa. Por entre um sorriso afável, pergunta se queremos que nos fale do “maestro”. Anuímos.
Entramos para uma sala e sentamo-nos.  Entre nós uma grande mesa oval branca.
..... 
Vejo no oceano o vulto imponente de Pratt, a sua respiração pesada, o seu rosto, pedra dura sentada na colina do seu tronco. Um feixe laser sai dos seus olhos, traçando o horizonte que me cerca. Gigante agitado, empurra com os seus braços encaracolados de espuma, um veleiro de dois mastros para a costa. Sinto-o adornar, raspando ruidosamente nas areias da minha alma. Subindo a praia, o navio acosta de lado. Lentamente embalado pelo braço do oceano, vai cavando o seu leito.
Duas figuras saltam repentinamente, apoiando-se na amurada. Olham-se de frente e fundem-se. Corto e Rasputine são um só. Alter-ego do mestre criador, nas palavras do seu pupilo. Desenhos mil vezes feitos e refeitos, até que a sua essência se confunda na génese do traço do mestre. A promiscuidade entre a autoridade e a tirania, cicatrizada nas mãos do aprendiz. E no ventre do gesto, a violência se fez ternura, lembrando distantes noites ébrias, banhadas pelo néctar das narrativas Prattianas.
.....
– A fábula de Veneza?– Fui eu que a desenhei – diz com orgulho!
Confesso que já nem me recordo em que línguas falámos. Mas do Inglês ao Italiano, passando pelo Francês, acho que as corremos todas.
Ficou espantado quando lhe dissemos - E você? Fale-nos de si? Também gosta de viajar?
Guido é arquitecto em idade de reforma. É uma figura alta, elegante, com o relevo do seu cabelo grisalho a fugir-lhe da testa. Senhor de um rosto gentil. Olhos claros, repousados sobre um nariz curvilíneo, onde descansam uns óculos redondos. Uma pequena argola pende da orelha esquerda, traduzindo a romântica irreverência do sangue de Corto, que respira nas suas veias.
Vive a desilusão de uma Veneza descaracterizada, os seus canais transpirando a ausência de residentes, cujo número diminui de ano para ano. Uma cidade sem habitantes perde a sua alma. Os seus filhos há muito que deixaram a sereníssima, na ânsia de escaparem às limitações insulares. Vive numa casa fora dos roteiros turísticos. A cidade está descuidada. É um museu a céu aberto, permanentemente inundado por marés de turistas, que a engolem no seu furor fotográfico, transformando-a num mero capítulo do seu álbum de recordações.
Preocupa-se com o futuro deste seu amor. Tem consciência das dificuldades inerentes à sua revitalização. Estará Veneza condenada? Quer pelo abandono das suas gentes, quer pela subida do nível das águas do mar? É uma pena.
- Olha, queres tirar uma fotografia comigo e com a Venexiana?
- Quem? (Respondo eu!)
- A Venexiana Stevenson! Também está cá!
 
 
E ali estava eu no meio daqueles dois, no interior de um universo que me é tão querido.
De Partida

Pratt amava viajar. Na maioria das vezes dedicar-se-ia ao trabalho de investigação “in loco” supervisionando depois “os bonecos”. Até dada altura, o seu grau de exigência foi elevado, obrigando os seus colaboradores a seguirem na perfeição, a geometria dos seus traços.
Nos últimos anos, é mais difícil reconhecer idêntica mestria. Algo serenou a ira do mestre, fazendo com que tolerasse um canto menos melodioso da pena. Talvez a actual “curadora” da sua obra, companheira dos seus derradeiros anos de vida, tenha algo a dizer sobre isto.
E enquanto o Sol se deitava, repousando nas turvas águas da laguna, deixámos Veneza. Não sem antes visitarmos o Lido, onde se encontra o famoso hotel, pano de fundo do romance de Thomas Mann.
No Vaporetto, após passarmos uma Murano brilhante, no orgulho da sua afamada indústria vidreira, o manto branco dos alpes aconchegou-nos a despedida.
Foi sem espanto que recebi a notícia de que a “Casa di Corto” encerrara portas em Abril de 2012. Pouco mais de um ano esteve aberta. E no decurso desse período, já havia encerrado mais do que uma vez.
Não dispondo de quaisquer apoios e dada a impossibilidade de exposição do acervo das obras de Pratt, detidas pela sociedade Cong SA, dirigida por Patrizia Zanotti, este desfecho tornou-se inevitável.
A vida segue em Veneza, local onde portais mágicos se abrem e fecham, a espaços, no infinito devir dos tempos.

 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A ILHA


No fim de semana passado peguei na família, enfiei-os dentro do carro e vá de rumar ao sul.
 
Cento e setenta quilómetros depois, chegámos ao nosso destino. O parque de campismo da Ilha do Pessegueiro.
 
Embora ainda revele algumas semelhanças com o que se lhe conhecia, cresceu. Ocupa agora uma área maior, tem mais espaço para tendas, roulottes e afins. Tem também disponíveis, mais apartamentos e bungalows.
 
A dar-nos as boas vindas tivemos a voz fanhosa da recepcionista, de imediato reconhecida pela Catarina, a única de nós que já lá havia estado.
 
Ao instalarmo-nos, enquanto desvendávamos “os segredos à casa” apercebemo-nos da magnífica vista do alpendre.


 
No meio do azul, partilhando um horizonte de água salgada, lá estava ela.
 
Uma ilha em si, é já berço do misticismo exógeno de quem nunca a pisou. Aliada a uma lenda, sedimenta o etéreo, tornando-o capaz de suportar os apertados abraços de Poseidon.
 
E a Catarina contava como ela, o Carlos e talvez o seu avô (já não se lembra bem) há vinte e poucos anos atrás, lá haviam chegado a nado, saídos do areal da costa, num dia de Verão, com mar calmo e maré vazia.
 
Segundo ela, a ilha pouco ou nada tinha de interessante, apenas ninhos de aves e algumas ruínas do forte que ali existira em tempos. Do pessegueiro, nem vestígios, a ilha só tinha rochas e arbustos.
 
Apesar desta “desromantização” da ínsula, há algo em mim que anseia por conhecer aquele espaço. Não fosse o cansaço da viagem, acumulado com uma semana de stress laboral, o vento, a maré alta e a corrente, teria feito a travessia a nado nesse mesmo dia.
 
Após um par de horas na praia, um banho e jantar, fomos todos dormir.
 
A noite foi de alguma agitação, pois o Tiago, no auge dos seus cinco aninhos, ainda anda em fase de largar a fralda da noite.
No dia seguinte, despertámos para a humidade de uma manhã cinzenta.
 
Quem conhece a costa Vicentina sabe que muitas vezes isso não é mais do que o prenúncio de uma tarde de braseiro, mas dias há em que a bruma teima em não se ir embora e a ida à praia se fica apenas pela intenção.
 
Há que ser optimista! Aquele iria ser o melhor dia do ano!
 
E lá fomos, acompanhados do lanche e das tralhas estivais, para o meio de um areal húmido, esperançosos de que o rei Sol vislumbrasse uma saída do labirinto escuro onde se perdera.
 
A lua cheia do dia anterior descansava ainda noutro hemisfério e o mar, querendo chegar-se a ela, distanciara-se da costa, deixando a nú os inúmeros rochedos, pedaços de pedra rasgada que o rigor do Inverno destapara no auge da sua cólera, engolindo o enorme manto de areia que até então os cobrira.
E num horizonte de espessa névoa, apenas a espuma das ondas se destacava.
 
Os meus filhos perguntavam: - Pai, onde está a Ilha? Não se consegue ver a ilha! Mas ela está lá, não está?
 
Nem sinal dela! Eclipsada pela bruma, troçava dos nossos sentidos. Apenas o barulho das gaivotas e restante companhia alada, nos faziam desconfiar da sua presença.
 
E pouco a pouco, enquanto eles brincavam comigo no extenso areal, a névoa foi-se dissipando e o pequeno pedaço de terra, parecendo emergir lentamente da água, decidiu aparecer. Não sem antes brincar um pouco às escondidas connosco, pois tão depressa se exibia num pequeno vislumbre, como logo a seguir voltava a desaparecer.
 
"E o pessegueiro?" Pensava eu. Mas que raio! Como poderia uma árvore ter medrado e sobrevivido, naquele pedaço de terra de aparência inóspita, permanentemente invadido por dezenas de aves inquietas e barulhentas?
 
E na distância, vislumbrava a meio da costa da ilha, um pequeno cais flutuante e um barquito que, a espaços, lá atracava carregado de gente. E lá se viam não mais do que uma dúzia de cabecitas, passeando pelos parcos caminhos abertos no meio dos arbustos e das rochas, espreitando o topo da ilha, no interior do que visto da orla costeira, se assemelhava às ruínas de um pequeno forte.
 
“Eu, se quiser, apesar da corrente, consigo lá chegar a nado! Mmmmm… e depois se o Pedro também quiser ir comigo? É melhor não. Haverá outra oportunidade, certamente. Até porque lá chegado, como reagiria o barqueiro que por lá passeia aquelas gentes? Melhor não!”
 
Após um maravilhoso dia de praia em família, regressámos finalmente a casa, passeando pela costa até à marginal de Sines e daí, rumo à Autoestrada em direcção a Almada.
 
Deixámos a ilha lá longe, sossegada, entregue às suas lendas, às suas ruínas, às aves e seus ninhos, àquele barqueiro e às cabecitas que ele por lá faz passear.
 
Entretanto, a trova soava continuamente na minha cabeça: “Havia um pessegueiro na ilha, plantado por um Vizir de Odemira, que dizem por amor se matou novo, aqui, no lugar de Porto Covo”.
 
Donde diabo saíra aquela estória? Teria alguma base histórica ou seria apenas uma invenção destinada a romancear a paisagem, de forma a torná-la ainda mais bela?
 
E vai daí, decidi investigar… Se também estiverem curiosos, podem encontrar as respostas aqui: