Intro: Este texto é dedicado a todos os que sentem "o desejo de ser inútil" e por vezes se perdem no universo de Corto.
A quem não conhece este universo, recomendo a leitura da Fábula de Veneza. É uma boa porta de entrada.
A VIAGEM É A SUA CASA
O lar dos heróis românticos é a viagem.
Só encontram repouso no regaço de uma nova aventura.
Atravessando mundo. Um largo universo, uma infinitude de planos paralelos. Fantasias reais, para quem segue franqueando portas mágicas. Através delas, deambulamos nos meandros do labirinto imaginário do seu autor.
Veneza, Fevereiro de 2011. É inaugurada a “Casa di Corto”.
- Este é um porto encantado para
qualquer marinheiro.
Em Março de 2011 visito Veneza
na companhia da Catarina. Embora fosse um sonho há muito acalentado, poderíamos
ter escolhido outro destino. A Catarina em criança já lá havia estado (pese
embora de pouco ou nada se lembrasse).
Um dos momentos mais marcantes da viagem é a chegada ao
destino.
Estava um dia de sol. Algumas nuvens arrastavam a
sua sombra pelo solo.
Baralhados pelas confusas indicações, foi
uma sorte acabarmos dentro do autocarro certo, à saída do Aeroporto Marco Polo.
Ficámos junto à porta de entrada. Estava lotado. E no meio
daquela confusão, dei por mim a pensar no turista italiano que, havia uns tempos,
fora assaltado no Metro de Lisboa, à minha frente.
Volvidos alguns quilómetros de encontrões e apertos, entre
pessoas que entram e saem, tivemos direito ao primeiro vislumbre da sereníssima,
suspensa no seio das águas.
Atravessada a língua de terra que constitui a “ponte” com o
continente, desembarcámos na “Piazzale di Roma”. Tarecos às costas, rumo ao
hotel, subimos a ponte “Degli Scalze” sobre o Grande Canal.
A quase ausência de ruídos mecânicos. Que espanto! Uma cidade sem carros. E as gôndolas – finalmente!
A quase ausência de ruídos mecânicos. Que espanto! Uma cidade sem carros. E as gôndolas – finalmente!
Ao planearmos os nossos passeios tornou-se evidente a
dicotomia dos roteiros. A Catarina levava um pequeno guia com o “Top Ten" de
Veneza. Eu pretendia refazer os passos de Corto na Fábula. Lá acabámos por
chegar a um consenso, repartindo ou conciliando os percursos, conforme fosse o
caso.
Veneza é um local memorável, mas melancólico. Carregado de genialidade pelas imensas obras que alberga e pelas almas dos
seus autores, cujos fantasmas ora se evaporam, ora se dissolvem nas escuras
águas dos seus incontornáveis canais.
Chego à primeira porta.
- Fecha os olhos. Abre agora a porta.
- Que vês?
- Uma mescla de gentes oriundas de civilizações distintas.
No decorrer das eras, moldaram o lodo dos canais, transformando os alicerces de
pinho em raízes da história universal. Delinearam as águas da laguna que a
circunda com o contorno das lendas, construindo com a pedra das suas memórias,
a cidade que "flutua" nas águas.
Na "Casa di Corto"
Transposto o portão, acedi ao pequeno jardim. Ao fazê-lo,
sou sugado para um limbo. A realidade e o imaginário, tudo é leve e difuso. Não
há princípio ou fim. No seu lugar, a perpétua continuidade.
Em frente, uma outra porta, no extremo oposto. O acesso via
canal.
Ultrapassado o pequeno jardim, à esquerda, a porta de entrada da "casa". Lá dentro, um pequeno balcão, onde um rapaz nos recebe, dando as boas vindas.
Ultrapassado o pequeno jardim, à esquerda, a porta de entrada da "casa". Lá dentro, um pequeno balcão, onde um rapaz nos recebe, dando as boas vindas.
Na entrada, espalhados pelas paredes do hall, pranchas, aquarelas e esboços originais de Pratt.
Nas salas seguintes, somos cumprimentados em
silêncio por um conjunto de móveis e variadíssimos objectos. Descansam no pretenso porto de
abrigo do intrépido marinheiro. A coisa inanimada, bem
arrumada, denuncia na sua letargia, a ausência de propriedade. Sendo casa de
muitos, aquela não é casa de ninguém.
- Este aventureiro nunca teve poiso certo!
Sussurra o seu pai ao meu ouvido.
- Pai?
Será que Corto, é mesmo
filho de um marinheiro da Cornualha e de uma cigana de Gibraltar?
Saí, voltando no dia seguinte.
Deixara encomendado o livro “Corto Sconto”, um guia dos
percursos de Corto por Veneza. Esta obra dá-nos a conhecer uma Veneza menos
turística, mas não menos bela e não menos carregada de história. Não se limitando
a indicar vários locais e a sua ligação a Corto, relata também, a história e as
lendas que estes encerram.
Um dos autores do livro é Guido Fuga. Antigo colaborador e
amigo do "maestro", é parte activa no projecto “Casa di Corto”. A recolha do livro,
coincide com a presença deste simpático sexagenário.
Dispõem-se a ter connosco uma conversa. Por entre um sorriso afável, pergunta se queremos que nos fale do “maestro”. Anuímos.
Entramos para uma sala e sentamo-nos. Entre nós uma grande mesa oval branca.
Vejo no oceano o vulto imponente de Pratt, a sua
respiração pesada, o seu rosto, pedra dura sentada na colina do seu tronco. Um
feixe laser sai dos seus olhos, traçando o horizonte que me cerca. Gigante
agitado, empurra com os seus braços encaracolados de espuma, um veleiro de dois
mastros para a costa. Sinto-o adornar, raspando ruidosamente nas areias da
minha alma. Subindo a praia, o navio acosta de lado. Lentamente embalado pelo
braço do oceano, vai cavando o seu leito.
Duas figuras saltam repentinamente, apoiando-se na amurada.
Olham-se de frente e fundem-se. Corto e Rasputine são um só. Alter-ego do
mestre criador, nas palavras do seu pupilo. Desenhos mil vezes feitos e
refeitos, até que a sua essência se confunda na génese do traço do mestre. A promiscuidade
entre a autoridade e a tirania, cicatrizada nas mãos do aprendiz. E no ventre
do gesto, a violência se fez ternura, lembrando distantes noites ébrias,
banhadas pelo néctar das narrativas Prattianas.
.....
.....
– A fábula de Veneza?– Fui eu que a desenhei – diz com
orgulho!
Confesso que já nem
me recordo em que línguas falámos. Mas do Inglês ao Italiano, passando pelo
Francês, acho que as corremos todas.
Ficou espantado quando lhe dissemos - E você? Fale-nos de
si? Também gosta de viajar?
Guido é arquitecto em idade de reforma. É uma figura alta,
elegante, com o relevo do seu cabelo grisalho a fugir-lhe da testa. Senhor de
um rosto gentil. Olhos claros, repousados sobre um nariz curvilíneo, onde descansam
uns óculos redondos. Uma pequena argola pende da orelha esquerda, traduzindo a
romântica irreverência do sangue de Corto, que respira nas suas veias.
Vive a desilusão de uma Veneza descaracterizada, os seus
canais transpirando a ausência de residentes, cujo número diminui de ano para
ano. Uma cidade sem habitantes perde a sua alma. Os seus filhos há muito que
deixaram a sereníssima, na ânsia de escaparem às limitações insulares. Vive
numa casa fora dos roteiros turísticos. A cidade está descuidada. É um museu a
céu aberto, permanentemente inundado por marés de turistas, que a engolem no
seu furor fotográfico, transformando-a num mero capítulo do seu álbum de
recordações.
Preocupa-se com o futuro deste seu amor. Tem consciência das dificuldades inerentes à sua revitalização. Estará Veneza condenada? Quer pelo abandono das suas gentes, quer pela subida do
nível das águas do mar? É uma pena.
- Olha, queres tirar uma fotografia comigo e com a Venexiana?
- Quem? (Respondo eu!)
- A Venexiana Stevenson! Também está cá!
E ali estava eu no meio daqueles dois, no
interior de um universo que me é tão querido.
De Partida
Pratt amava viajar. Na maioria das vezes dedicar-se-ia ao trabalho de investigação “in loco” supervisionando depois “os bonecos”. Até dada altura, o seu grau de exigência foi elevado, obrigando os seus colaboradores a seguirem na perfeição, a geometria dos seus traços.
Pratt amava viajar. Na maioria das vezes dedicar-se-ia ao trabalho de investigação “in loco” supervisionando depois “os bonecos”. Até dada altura, o seu grau de exigência foi elevado, obrigando os seus colaboradores a seguirem na perfeição, a geometria dos seus traços.
Nos últimos anos,
é mais difícil reconhecer idêntica mestria. Algo serenou a ira do mestre,
fazendo com que tolerasse um canto menos melodioso da pena. Talvez a actual “curadora”
da sua obra, companheira dos seus derradeiros anos de vida, tenha algo a dizer
sobre isto.
E enquanto o Sol se deitava, repousando nas turvas águas da
laguna, deixámos Veneza. Não sem antes visitarmos o Lido, onde se encontra o
famoso hotel, pano de fundo do romance de Thomas Mann.
No Vaporetto, após passarmos uma Murano brilhante, no orgulho
da sua afamada indústria vidreira, o manto branco dos alpes aconchegou-nos a
despedida.
Foi sem espanto que
recebi a notícia de que a “Casa di Corto” encerrara portas em Abril de 2012. Pouco
mais de um ano esteve aberta. E no decurso desse período, já havia encerrado mais do que
uma vez.
Não dispondo de quaisquer
apoios e dada a impossibilidade de exposição do acervo das obras de Pratt,
detidas pela sociedade Cong SA, dirigida por Patrizia Zanotti, este desfecho
tornou-se inevitável.
A vida segue em Veneza, local onde portais mágicos se abrem
e fecham, a espaços, no infinito devir dos tempos.