domingo, 26 de outubro de 2014

REGRESSO (QUASE) SEM POESIA


Pi-pi-pi-pi-pi-pi...!
Na cabeça: Eeiaahhh... que horas são isto? Seis e tal da madrugada?!
Merda para o "jet-lag" das férias. Dormi pouco mais de três horas. Estou sem energia. Não vou trabalhar!
Bem, ela já se levantou. É melhor levantar-me também. O puto mais velho começa as aulas hoje e entra às 8 e 15.
Levanto-me. Sinto os ossos perros. Tropeço numas porcarias junto aos pés da cama. Abro as persianas. Ao mesmo tempo fecho os olhos para não cegar com a claridade. Ainda é de noite. Sinto o alívio do vampiro! Por pouco não fui incinerado.
- Arranja os miúdos, enquanto eu tomo banho!
Pronto! Já está a dar ordens! Eu sei que tenho de ir acordar e arranjar os miúdos! Foi o que combinámos ontem, não foi?
- Vá lá malta, "rise and shine"! As férias acabaram. Toca a acordar moços! Hoje é dia de escola!
 
Os putos protestam e viram-se para o lado. Como eu os percebo! Longe vão os tempos em que passavam a noite a acordar e a acordarem-nos. Hoje já apreciam um belo soninho, quase tanto como nós! Sobretudo em dia de aulas!
- Tem aqui a vossa roupa, vistam-se e sigam para a cozinha, rumo ao pequeno almoço.
Ouço mais resmungos e protestos a sair das miniaturas de homem, mantendo a sua posição horizontal sobre o macio colchão. Mais uns abanões e uns berros e... Dois anões zangados, a sair!
- Branca de neve, tens pá troca? Dava-me jeito trocar estes dois pelo Feliz e o Dengoso.
A Branca não me ouve. Ainda dorme, lá na terra dos sonhos, onde todos foram felizes para sempre.
-Paaaiii, eu não quero estes sapatos!
-Paaaiiiii, eu não visto estas calças!
- ($%#§) Meninos já estamos atrasados, não se ponham com fitas!
Sacanas dos putos! Não nos podiam ajudar?! Nestes dias em que andamos todos à procura de um resto de férias, caído atrás da cómoda, ou debaixo da mesa de jantar?
 
- Tens de ser mais despachado com eles! Ainda não estão vestidos e já devíamos estar a sair de casa!
Como se a culpa fosse minha! Como se eu tivesse uma varinha mágica para curar as birras de sono!
E de repente, os filhos com quem brincámos e relaxámos ainda ontem, tornam-se um empecilho, mais um obstáculo a vencer no caminho para chegar a horas ao emprego. 
- Meninos, despachem-se ou a mamã vai-se embora sem vocês! (Está bem, abelha!)
Muitos berros e ameaças depois, lá estão os três à espera que chegue o elevador. Mais ou menos vestidos. Mais ou menos comidos. Mais ou menos preparados para o dia que os espera. O dia que todos gostávamos de ter feito esperar mais e mais e mais um pouco.
 
Sabemos que temos um tempo limite para atravessar a linha que separa o fim das férias do primeiro dia de trabalho. Mas estou certo que todos nos esforçamos por adiar ao máximo esse momento. Porque ao passar essa fronteira, deixamos de lado a liberdade de sermos inteiramente senhores de nós e do nosso tempo. E gelamos quando, olhando para a alfandega cronológica, vemos o relógio à nossa espera, sorrindo cínico de algemas na mão.       
 
Faço (ou desfaço) a barba. Banho. Vestir. Pequeno-almoço. Saio. Entro no carro. Mergulho num rio de veículos que lentamente, desce encosta abaixo, desaguando numa rotunda onde, porque temos pressa, todos andamos devagar. Como na "rotunda - carrocel" de Jacques Tati, em Playtime!
 
Os chico-espertos atravessam-se à nossa frente. Nós buzinamos e refilamos com eles. E depois refilamos connosco, por nos termos dado ao trabalho de refilar com eles. Os minutos passam. Não saímos do sítio. (The F... word).
 
Muito, demasiado, tempo depois, chegámos finalmente ao escritório. E não há quem não nos pergunte como foram as férias e se já acabaram. Foram boas e sim, já acabaram!
Caso contrário que estava aqui a fazer?! Acabaram! Não preciso que me estejam constantemente a lembrar!
Bem vivos na nossa memória estão os sítios onde estivemos, as aventuras porque passámos. Na penumbra das quatro paredes a nossa pele vagueia perdida, à procura do sol que sempre a acariciou, todos esses dias.
 
E na noite dos dias iguais, escapa-se nos a capacidade de contemplar a beleza cósmica, contida na infinitude do ser. De, juntamente connosco, admirarmos tudo aquilo que nos rodeia e encerra em si o deslumbrante milagre do quadro à nossa frente, originalmente intitulado - "vida".