quarta-feira, 23 de abril de 2014

MEDOS


Não sei se sabem, mas entre outros significados, a palavra medo também serve para designar um monte de areia, ou seja, uma duna.
 
Dada a origem e localização da "Mata dos Medos", a sua designação reflecte o significado acima descrito e não aquele a que estamos habituados.
 
Esta mata estende-se ao longo da arriba fóssil da Costa da Caparica, prolongado-se até à Fonte da Telha. Consiste numa faixa de aproximadamente 5 Km, ocupando uma superfície com cerca de 338 hectares.
 
Tanto quanto se sabe, terá sido mandada instalar por el-rei D.João V no início do séc.XVIII, com o objectivo de evitar o avanço das dunas (ou medos) para os territórios agrícolas.
 
É o grande pulmão do concelho de Almada, estando inserida na paisagem protegida da arriba fóssil. Foi ainda classificada como reserva botânica, em diploma legal datado de 1971. Possui três endemismos lusitanos e quinze ibéricos, de elevado valor botânico.
 
É preocupante o facto de existirem alguns projectos susceptíveis de a por em perigo, caso venham a ser concretizados.
 
Por enquanto a mata lá vai resistindo e os medos podem acabar mesmo por ser aqueles a que estamos habituados, caso a resolvam visitar num dia de Inverno, perto do final da tarde...
 
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MEDOS
 
Suspenso na bruma do entardecer, entro nesse vale assombrado. Resvalo deitado, para o pôr de um sol anafado, borralho das aindas mornas, cinzas da noite.
O breu alimenta-se ao passear suavemente, deixando o seu manto espesso descair, mostrando as mil e uma feridas.
Abertas por duas balas. Somente. Saídas da mão do paraíso - nobre vénus, porquanto disfarçada de luar.
Caem pingos espessos de orvalho vermelho - pensamentos a sangrar.
 
Escarlate rosa encantada, seus espinhos rasgam um infinito spleen!
Ouço-a gritar... Som ensurdecedor!
A alvorada atómica! Não! Este deus sem virgindade, abraça a humanidade...
 
- Radioactividade, resgata o moribundo! Suga as feridas, rasga a memória, beija o luar.
 
Luar, lugar, não. Não era o seu.
Tentem estar nalgum lugar, sem nunca lá estar.
Brilhante, prateada e fria, uma lua vazia liberta os longos farrapos.
As tiras flutuam ao vento, caíndo lentamente, entre as brumas, sobre a colina.
O crocitar de um corvo assinala a entrada na rua escura e fria.
Maldita porta entreabrindo, deixa sair... melancolia assombrada. 
 
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Sabiam que um sinónimo de melancolia é hipocondria?   
 

sábado, 12 de abril de 2014

MÃO DADA COM A MORTE


Muito cedo nesta viagem, ganhamos consciência do nosso destino. Só não sabemos quando e como lá vamos chegar. A forma como o fazemos, faz toda a diferença. Não interessa se demorámos muito ou pouco, mas apenas o quanto desfrutámos. A beleza da “paisagem” está assim, intrinsecamente ligada à essência do ser.
Ter presente quem somos, sabendo seguir a fleuma das nossas vontades, constitui a chave do paraíso na terra. 
 
Não poucas vezes, acordo com o som dos corvos que esvoaçam perto da minha casa. Pousam nos telhados da escola em frente, e enchem o ar com as suas “vozes” agoniantes. Lisboa tornou-se uma cidade pouco acolhedora, daí o seu exílio nesta margem. Outros houve que voaram para bem mais longe, tomando a distância, a exacta medida da sua "desilusão" com a capital, da qual são o símbolo.
"Algumas lendas contam que quando uma pessoa morre, um corvo carrega sua alma até o paraíso. Por isso, dois corvos figuram nas armas de Lisboa, pousados numa caravela, um à proa e outro à popa, vigiando o corpo de S. Vicente, o padroeiro da cidade, durante a viagem dos ossos do santo desde Sagres até Lisboa.
Aliás, não há muitos anos, era comum ver corvos nas tabernas dos bairros típicos da capital, passeando impávidos pelos passeios ou imitando as vozes dos clientes mais habituais.
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Devíamos seguir o exemplo da Inglaterra, onde a ave é protegida pela própria rainha. Sempre que um dos famosos corvos da Torre de Londres morre ou desaparece é obrigação da Guarda Real proceder à sua substituição imediata. Tudo para que não se realize a profecia: Londres desaparecerá quando, na Torre, morrer o último corvo."(*)

(*) Extraído do artigo "Os corvos da cidade de Lisboa estão a desaparecer" por MARIANA CORREIA DE BARROS publicado no Diário de Notícias em 5 de Julho de 2009
 
 
Vou de mão dada com a morte. Fez-se minha amiga sem eu a convidar. Sempre que alguém aparece, esconde-se dentro da minha cabeça, disfarçada de doença, por assim lhe ser mais fácil entrar. Conquistou um espaço imenso e só nela consigo pensar.
Afasta as cores e toda a alegria que a vida nos sabe emprestar. A minha memória é noite, só do breu se consegue alimentar. Acordo ouvindo o crocitar dos corvos, necrofagia de um sol negro que desperta sem poder brilhar.
Um líquido escuro jorra da minha alma, outrora alegra e foliona. Fez amargo, não pára de purgar .
Fujo para longe do meu corpo. Abandono a cabeça noutro lugar.
Noutro lugar…
Estou farto. Não me consigo suportar.
Uma silhueta negra rasga o horizonte, voando para longe da janela. Um monte de ossos desmaiado na cama, reclama um cangalheiro que os saiba acariciar.
Despido de mim, evadido no céu sob o manto da solidão, abraça-me o fado, num apocalipse infinito, nascido do verso das estrelas que não aprenderam a brilhar.