domingo, 26 de outubro de 2014

REGRESSO (QUASE) SEM POESIA


Pi-pi-pi-pi-pi-pi...!
Na cabeça: Eeiaahhh... que horas são isto? Seis e tal da madrugada?!
Merda para o "jet-lag" das férias. Dormi pouco mais de três horas. Estou sem energia. Não vou trabalhar!
Bem, ela já se levantou. É melhor levantar-me também. O puto mais velho começa as aulas hoje e entra às 8 e 15.
Levanto-me. Sinto os ossos perros. Tropeço numas porcarias junto aos pés da cama. Abro as persianas. Ao mesmo tempo fecho os olhos para não cegar com a claridade. Ainda é de noite. Sinto o alívio do vampiro! Por pouco não fui incinerado.
- Arranja os miúdos, enquanto eu tomo banho!
Pronto! Já está a dar ordens! Eu sei que tenho de ir acordar e arranjar os miúdos! Foi o que combinámos ontem, não foi?
- Vá lá malta, "rise and shine"! As férias acabaram. Toca a acordar moços! Hoje é dia de escola!
 
Os putos protestam e viram-se para o lado. Como eu os percebo! Longe vão os tempos em que passavam a noite a acordar e a acordarem-nos. Hoje já apreciam um belo soninho, quase tanto como nós! Sobretudo em dia de aulas!
- Tem aqui a vossa roupa, vistam-se e sigam para a cozinha, rumo ao pequeno almoço.
Ouço mais resmungos e protestos a sair das miniaturas de homem, mantendo a sua posição horizontal sobre o macio colchão. Mais uns abanões e uns berros e... Dois anões zangados, a sair!
- Branca de neve, tens pá troca? Dava-me jeito trocar estes dois pelo Feliz e o Dengoso.
A Branca não me ouve. Ainda dorme, lá na terra dos sonhos, onde todos foram felizes para sempre.
-Paaaiii, eu não quero estes sapatos!
-Paaaiiiii, eu não visto estas calças!
- ($%#§) Meninos já estamos atrasados, não se ponham com fitas!
Sacanas dos putos! Não nos podiam ajudar?! Nestes dias em que andamos todos à procura de um resto de férias, caído atrás da cómoda, ou debaixo da mesa de jantar?
 
- Tens de ser mais despachado com eles! Ainda não estão vestidos e já devíamos estar a sair de casa!
Como se a culpa fosse minha! Como se eu tivesse uma varinha mágica para curar as birras de sono!
E de repente, os filhos com quem brincámos e relaxámos ainda ontem, tornam-se um empecilho, mais um obstáculo a vencer no caminho para chegar a horas ao emprego. 
- Meninos, despachem-se ou a mamã vai-se embora sem vocês! (Está bem, abelha!)
Muitos berros e ameaças depois, lá estão os três à espera que chegue o elevador. Mais ou menos vestidos. Mais ou menos comidos. Mais ou menos preparados para o dia que os espera. O dia que todos gostávamos de ter feito esperar mais e mais e mais um pouco.
 
Sabemos que temos um tempo limite para atravessar a linha que separa o fim das férias do primeiro dia de trabalho. Mas estou certo que todos nos esforçamos por adiar ao máximo esse momento. Porque ao passar essa fronteira, deixamos de lado a liberdade de sermos inteiramente senhores de nós e do nosso tempo. E gelamos quando, olhando para a alfandega cronológica, vemos o relógio à nossa espera, sorrindo cínico de algemas na mão.       
 
Faço (ou desfaço) a barba. Banho. Vestir. Pequeno-almoço. Saio. Entro no carro. Mergulho num rio de veículos que lentamente, desce encosta abaixo, desaguando numa rotunda onde, porque temos pressa, todos andamos devagar. Como na "rotunda - carrocel" de Jacques Tati, em Playtime!
 
Os chico-espertos atravessam-se à nossa frente. Nós buzinamos e refilamos com eles. E depois refilamos connosco, por nos termos dado ao trabalho de refilar com eles. Os minutos passam. Não saímos do sítio. (The F... word).
 
Muito, demasiado, tempo depois, chegámos finalmente ao escritório. E não há quem não nos pergunte como foram as férias e se já acabaram. Foram boas e sim, já acabaram!
Caso contrário que estava aqui a fazer?! Acabaram! Não preciso que me estejam constantemente a lembrar!
Bem vivos na nossa memória estão os sítios onde estivemos, as aventuras porque passámos. Na penumbra das quatro paredes a nossa pele vagueia perdida, à procura do sol que sempre a acariciou, todos esses dias.
 
E na noite dos dias iguais, escapa-se nos a capacidade de contemplar a beleza cósmica, contida na infinitude do ser. De, juntamente connosco, admirarmos tudo aquilo que nos rodeia e encerra em si o deslumbrante milagre do quadro à nossa frente, originalmente intitulado - "vida".

terça-feira, 23 de setembro de 2014

MENTE ATORMENTADA

Picasso viveu na Paris ocupada durante a segunda guerra mundial. Consta que um certo dia, um grupo de oficiais alemães, vendo uma imagem do quadro "Guernica" lhe perguntou: "Foi você quem fez isto?". Ao que, após um instante de pausa, Picasso respondeu: " Não, foram vocês!".

Uma das obras mais marcantes da pintura contemporânea é a Guernica de Picasso. Datada de 1937, é um exorcismo da dor das marcas da guerra. Prelúdio da enorme catástrofe que foi a segunda guerra mundial. Eco da funesta contenda que lacerou a sociedade civil Espanhola, abrindo uma enorme ferida.
Um espelho do lado negro da natureza humana, valiosíssima, conhecida no mundo inteiro, admirada e estudada como ícone do génio.
 
MENTE ATORMENTADA
 
Sabes que tens uma mente atormentada?!
Apenas uma mente atormentada pode emprenhar, para posteriormente dar à luz certo tipo de criações. Tormento é sémen de criação.
Quando se está em paz, os sentidos estão ocupados a desfrutar, recolhendo informação.  É um facto. Quando estás de mãos dadas com os anjos, não consegues criar.
As obras são demónios que se debatem no teu interior, agitando-se violentamente, atirando-se contra as paredes da alma, na ânsia de sair. E por vezes conseguem - as criações.
Então e a "inspiração divina"? Não poderá ser fruto de uma mente tranquila? Em paz com o mundo e consigo própria? Não.

O autor é um "auto-exorcista". Exibe aos outros os demónios que transpõe a fronteira da sua alma. A beleza da sua obra é proporcional à capacidade de retratar os tormentos que o assolam.
Muitos buscam inspiração nas obras de terceiros. Ao fazê-lo, abrem a porta à essência de belzebu presente na sua origem. Juntam mais um gato no saco. Depois de muita bulha, alguma coisa sairá cá para fora.
Passamos aos outros os nossos sonhos e pesadelos. Quão enfadonha seria a vida sem esta demoníaca promiscuidade!


 

quarta-feira, 23 de julho de 2014

NELLA CASA DI CORTO

Intro: Este texto é dedicado a todos os que sentem "o desejo de ser inútil" e por vezes se perdem no universo de Corto.
A quem não conhece este universo, recomendo a leitura da Fábula de Veneza. É uma boa porta de entrada.

A VIAGEM É A SUA CASA

O lar dos heróis românticos é a viagem.
Só encontram repouso no regaço de uma nova aventura.
Atravessando mundo. Um largo universo, uma infinitude de planos paralelos. Fantasias reais, para quem segue franqueando portas mágicas. Através delas, deambulamos nos meandros do labirinto imaginário do seu autor.
Veneza, Fevereiro de 2011. É inaugurada a “Casa di Corto”.
- Este é um porto encantado para qualquer marinheiro.
Em Março de 2011 visito Veneza na companhia da Catarina. Embora fosse um sonho há muito acalentado, poderíamos ter escolhido outro destino. A Catarina em criança já lá havia estado (pese embora de pouco ou nada se lembrasse).
Um dos momentos mais marcantes da viagem é a chegada ao destino.
Estava um dia de sol. Algumas nuvens arrastavam a sua sombra pelo solo.
Baralhados pelas confusas indicações, foi uma sorte acabarmos dentro do autocarro certo, à saída do Aeroporto Marco Polo.
 
Ficámos junto à porta de entrada. Estava lotado. E no meio daquela confusão, dei por mim a pensar no turista italiano que, havia uns tempos, fora assaltado no Metro de Lisboa, à minha frente.
Volvidos alguns quilómetros de encontrões e apertos, entre pessoas que entram e saem, tivemos direito ao primeiro vislumbre da sereníssima, suspensa no seio das águas.
Atravessada a língua de terra que constitui a “ponte” com o continente, desembarcámos na “Piazzale di Roma”. Tarecos às costas, rumo ao hotel, subimos a ponte “Degli Scalze” sobre o Grande Canal.
A quase ausência de ruídos mecânicos. Que espanto! Uma cidade sem carros. E as gôndolas – finalmente!
Ao planearmos os nossos passeios tornou-se evidente a dicotomia dos roteiros. A Catarina levava um pequeno guia com o “Top Ten" de Veneza. Eu pretendia refazer os passos de Corto na Fábula. Lá acabámos por chegar a um consenso, repartindo ou conciliando os percursos, conforme fosse o caso.
Veneza é um local memorável, mas melancólico. Carregado de genialidade pelas imensas obras que alberga e pelas almas dos seus autores, cujos fantasmas ora se evaporam, ora se dissolvem nas escuras águas dos seus incontornáveis canais.
Chego à primeira porta.
- Fecha os olhos. Abre agora a porta.
- Que vês?
- Uma mescla de gentes oriundas de civilizações distintas. No decorrer das eras, moldaram o lodo dos canais, transformando os alicerces de pinho em raízes da história universal. Delinearam as águas da laguna que a circunda com o contorno das lendas, construindo com a pedra das suas memórias, a cidade que "flutua" nas águas.
 
Na "Casa di Corto"

Transposto o portão, acedi ao pequeno jardim. Ao fazê-lo, sou sugado para um limbo. A realidade e o imaginário, tudo é leve e difuso. Não há princípio ou fim. No seu lugar, a perpétua continuidade.
Em frente, uma outra porta, no extremo oposto. O acesso via canal.
Ultrapassado o pequeno jardim, à esquerda, a porta de entrada da "casa". Lá dentro, um pequeno balcão, onde um rapaz nos recebe, dando as boas vindas.
Na entrada, espalhados pelas paredes do hall, pranchas, aquarelas e esboços originais de Pratt.
Nas salas seguintes, somos cumprimentados em silêncio por um conjunto de móveis e variadíssimos objectos. Descansam no pretenso porto de abrigo do intrépido marinheiro. A coisa inanimada, bem arrumada, denuncia na sua letargia, a ausência de propriedade. Sendo casa de muitos, aquela não é casa de ninguém.
- Este aventureiro nunca teve poiso certo!
Sussurra o seu pai ao meu ouvido.
- Pai?
Será que Corto, é mesmo filho de um marinheiro da Cornualha e de uma cigana de Gibraltar?
Saí, voltando no dia seguinte.
 
Deixara encomendado o livro “Corto Sconto”, um guia dos percursos de Corto por Veneza. Esta obra dá-nos a conhecer uma Veneza menos turística, mas não menos bela e não menos carregada de história. Não se limitando a indicar vários locais e a sua ligação a Corto, relata também, a história e as lendas que estes encerram.
Um dos autores do livro é Guido Fuga. Antigo colaborador e amigo do "maestro", é parte activa no projecto “Casa di Corto”. A recolha do livro, coincide com a presença deste simpático sexagenário.
Dispõem-se a ter connosco uma conversa. Por entre um sorriso afável, pergunta se queremos que nos fale do “maestro”. Anuímos.
Entramos para uma sala e sentamo-nos.  Entre nós uma grande mesa oval branca.
..... 
Vejo no oceano o vulto imponente de Pratt, a sua respiração pesada, o seu rosto, pedra dura sentada na colina do seu tronco. Um feixe laser sai dos seus olhos, traçando o horizonte que me cerca. Gigante agitado, empurra com os seus braços encaracolados de espuma, um veleiro de dois mastros para a costa. Sinto-o adornar, raspando ruidosamente nas areias da minha alma. Subindo a praia, o navio acosta de lado. Lentamente embalado pelo braço do oceano, vai cavando o seu leito.
Duas figuras saltam repentinamente, apoiando-se na amurada. Olham-se de frente e fundem-se. Corto e Rasputine são um só. Alter-ego do mestre criador, nas palavras do seu pupilo. Desenhos mil vezes feitos e refeitos, até que a sua essência se confunda na génese do traço do mestre. A promiscuidade entre a autoridade e a tirania, cicatrizada nas mãos do aprendiz. E no ventre do gesto, a violência se fez ternura, lembrando distantes noites ébrias, banhadas pelo néctar das narrativas Prattianas.
.....
– A fábula de Veneza?– Fui eu que a desenhei – diz com orgulho!
Confesso que já nem me recordo em que línguas falámos. Mas do Inglês ao Italiano, passando pelo Francês, acho que as corremos todas.
Ficou espantado quando lhe dissemos - E você? Fale-nos de si? Também gosta de viajar?
Guido é arquitecto em idade de reforma. É uma figura alta, elegante, com o relevo do seu cabelo grisalho a fugir-lhe da testa. Senhor de um rosto gentil. Olhos claros, repousados sobre um nariz curvilíneo, onde descansam uns óculos redondos. Uma pequena argola pende da orelha esquerda, traduzindo a romântica irreverência do sangue de Corto, que respira nas suas veias.
Vive a desilusão de uma Veneza descaracterizada, os seus canais transpirando a ausência de residentes, cujo número diminui de ano para ano. Uma cidade sem habitantes perde a sua alma. Os seus filhos há muito que deixaram a sereníssima, na ânsia de escaparem às limitações insulares. Vive numa casa fora dos roteiros turísticos. A cidade está descuidada. É um museu a céu aberto, permanentemente inundado por marés de turistas, que a engolem no seu furor fotográfico, transformando-a num mero capítulo do seu álbum de recordações.
Preocupa-se com o futuro deste seu amor. Tem consciência das dificuldades inerentes à sua revitalização. Estará Veneza condenada? Quer pelo abandono das suas gentes, quer pela subida do nível das águas do mar? É uma pena.
- Olha, queres tirar uma fotografia comigo e com a Venexiana?
- Quem? (Respondo eu!)
- A Venexiana Stevenson! Também está cá!
 
 
E ali estava eu no meio daqueles dois, no interior de um universo que me é tão querido.
De Partida

Pratt amava viajar. Na maioria das vezes dedicar-se-ia ao trabalho de investigação “in loco” supervisionando depois “os bonecos”. Até dada altura, o seu grau de exigência foi elevado, obrigando os seus colaboradores a seguirem na perfeição, a geometria dos seus traços.
Nos últimos anos, é mais difícil reconhecer idêntica mestria. Algo serenou a ira do mestre, fazendo com que tolerasse um canto menos melodioso da pena. Talvez a actual “curadora” da sua obra, companheira dos seus derradeiros anos de vida, tenha algo a dizer sobre isto.
E enquanto o Sol se deitava, repousando nas turvas águas da laguna, deixámos Veneza. Não sem antes visitarmos o Lido, onde se encontra o famoso hotel, pano de fundo do romance de Thomas Mann.
No Vaporetto, após passarmos uma Murano brilhante, no orgulho da sua afamada indústria vidreira, o manto branco dos alpes aconchegou-nos a despedida.
Foi sem espanto que recebi a notícia de que a “Casa di Corto” encerrara portas em Abril de 2012. Pouco mais de um ano esteve aberta. E no decurso desse período, já havia encerrado mais do que uma vez.
Não dispondo de quaisquer apoios e dada a impossibilidade de exposição do acervo das obras de Pratt, detidas pela sociedade Cong SA, dirigida por Patrizia Zanotti, este desfecho tornou-se inevitável.
A vida segue em Veneza, local onde portais mágicos se abrem e fecham, a espaços, no infinito devir dos tempos.

 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A ILHA


No fim de semana passado peguei na família, enfiei-os dentro do carro e vá de rumar ao sul.
 
Cento e setenta quilómetros depois, chegámos ao nosso destino. O parque de campismo da Ilha do Pessegueiro.
 
Embora ainda revele algumas semelhanças com o que se lhe conhecia, cresceu. Ocupa agora uma área maior, tem mais espaço para tendas, roulottes e afins. Tem também disponíveis, mais apartamentos e bungalows.
 
A dar-nos as boas vindas tivemos a voz fanhosa da recepcionista, de imediato reconhecida pela Catarina, a única de nós que já lá havia estado.
 
Ao instalarmo-nos, enquanto desvendávamos “os segredos à casa” apercebemo-nos da magnífica vista do alpendre.


 
No meio do azul, partilhando um horizonte de água salgada, lá estava ela.
 
Uma ilha em si, é já berço do misticismo exógeno de quem nunca a pisou. Aliada a uma lenda, sedimenta o etéreo, tornando-o capaz de suportar os apertados abraços de Poseidon.
 
E a Catarina contava como ela, o Carlos e talvez o seu avô (já não se lembra bem) há vinte e poucos anos atrás, lá haviam chegado a nado, saídos do areal da costa, num dia de Verão, com mar calmo e maré vazia.
 
Segundo ela, a ilha pouco ou nada tinha de interessante, apenas ninhos de aves e algumas ruínas do forte que ali existira em tempos. Do pessegueiro, nem vestígios, a ilha só tinha rochas e arbustos.
 
Apesar desta “desromantização” da ínsula, há algo em mim que anseia por conhecer aquele espaço. Não fosse o cansaço da viagem, acumulado com uma semana de stress laboral, o vento, a maré alta e a corrente, teria feito a travessia a nado nesse mesmo dia.
 
Após um par de horas na praia, um banho e jantar, fomos todos dormir.
 
A noite foi de alguma agitação, pois o Tiago, no auge dos seus cinco aninhos, ainda anda em fase de largar a fralda da noite.
No dia seguinte, despertámos para a humidade de uma manhã cinzenta.
 
Quem conhece a costa Vicentina sabe que muitas vezes isso não é mais do que o prenúncio de uma tarde de braseiro, mas dias há em que a bruma teima em não se ir embora e a ida à praia se fica apenas pela intenção.
 
Há que ser optimista! Aquele iria ser o melhor dia do ano!
 
E lá fomos, acompanhados do lanche e das tralhas estivais, para o meio de um areal húmido, esperançosos de que o rei Sol vislumbrasse uma saída do labirinto escuro onde se perdera.
 
A lua cheia do dia anterior descansava ainda noutro hemisfério e o mar, querendo chegar-se a ela, distanciara-se da costa, deixando a nú os inúmeros rochedos, pedaços de pedra rasgada que o rigor do Inverno destapara no auge da sua cólera, engolindo o enorme manto de areia que até então os cobrira.
E num horizonte de espessa névoa, apenas a espuma das ondas se destacava.
 
Os meus filhos perguntavam: - Pai, onde está a Ilha? Não se consegue ver a ilha! Mas ela está lá, não está?
 
Nem sinal dela! Eclipsada pela bruma, troçava dos nossos sentidos. Apenas o barulho das gaivotas e restante companhia alada, nos faziam desconfiar da sua presença.
 
E pouco a pouco, enquanto eles brincavam comigo no extenso areal, a névoa foi-se dissipando e o pequeno pedaço de terra, parecendo emergir lentamente da água, decidiu aparecer. Não sem antes brincar um pouco às escondidas connosco, pois tão depressa se exibia num pequeno vislumbre, como logo a seguir voltava a desaparecer.
 
"E o pessegueiro?" Pensava eu. Mas que raio! Como poderia uma árvore ter medrado e sobrevivido, naquele pedaço de terra de aparência inóspita, permanentemente invadido por dezenas de aves inquietas e barulhentas?
 
E na distância, vislumbrava a meio da costa da ilha, um pequeno cais flutuante e um barquito que, a espaços, lá atracava carregado de gente. E lá se viam não mais do que uma dúzia de cabecitas, passeando pelos parcos caminhos abertos no meio dos arbustos e das rochas, espreitando o topo da ilha, no interior do que visto da orla costeira, se assemelhava às ruínas de um pequeno forte.
 
“Eu, se quiser, apesar da corrente, consigo lá chegar a nado! Mmmmm… e depois se o Pedro também quiser ir comigo? É melhor não. Haverá outra oportunidade, certamente. Até porque lá chegado, como reagiria o barqueiro que por lá passeia aquelas gentes? Melhor não!”
 
Após um maravilhoso dia de praia em família, regressámos finalmente a casa, passeando pela costa até à marginal de Sines e daí, rumo à Autoestrada em direcção a Almada.
 
Deixámos a ilha lá longe, sossegada, entregue às suas lendas, às suas ruínas, às aves e seus ninhos, àquele barqueiro e às cabecitas que ele por lá faz passear.
 
Entretanto, a trova soava continuamente na minha cabeça: “Havia um pessegueiro na ilha, plantado por um Vizir de Odemira, que dizem por amor se matou novo, aqui, no lugar de Porto Covo”.
 
Donde diabo saíra aquela estória? Teria alguma base histórica ou seria apenas uma invenção destinada a romancear a paisagem, de forma a torná-la ainda mais bela?
 
E vai daí, decidi investigar… Se também estiverem curiosos, podem encontrar as respostas aqui:

sábado, 21 de junho de 2014

JEREMIAS


JEREMIAS

O meu pai levou hoje o gato ao veterinário. O bicho ficou internado. Jeremias conta já cerca de 21 anos de idade. Dos nossos, pois de acordo com algumas tabelas de equivalência que o “Doctor Google” me disponibilizou, Jeremias é um felino centenário, ou alguma coisa lá perto…

Está anémico, desidratado e pesa cerca de dois quilos e meio – está muito magro. Um pouco a medo, o meu pai foi-me dizendo que ele já não vai sair de lá…

Passaram mais de vinte anos e no entanto, como é nítida a memória do dia em que o fui buscar!

A gata de uma amiga havia tido uma ninhada no final do mês de Abril, mais precisamente no dia 30 de Abril. O cão (sim, tinha uma gata e um cão) fora o parteiro e ajudara a lamber os gatinhos, mal saíram do ventre da progenitora. Fantástico não é?

A casa da amiga ficava na Brandoa. Tentei reconhecer o sítio, se não fosse pelas parcas memórias (saí da Brandoa quando tinha três anos) seria pela meia dúzia de fotos que a minha família conservava daquele local. Mas nada disso ajudou. Aquele lugar era completamente estranho.

Entramos em casa da amiga e deparamos com uma ninhada de quatro gatinhos de um mês, a mãe gata e o cão parteiro.

Fui informado que inicialmente eram cinco, mas um já havia sido adoptado. Para facilitar a escolha, consciente que os mais bonitos seriam teoricamente mais “adoptáveis”, estava decidido a optar pelo bicho que desse menos nas vistas.

Mas afinal fui eu o escolhido! Um dos gatitos prendeu as suas pequenas garras na minha camisola e a partir daí não mais me largou. Mesmo quando, com muita dificuldade, lograva pousá-lo um pouco no chão, não tardava a arranjar forma de se pendurar novamente em mim.

Foi assim que Jeremias viajou da Brandoa até Lisboa e ganhou novos donos e um novo lar. Inicialmente, talvez por sentir falta da mãe, do tio e dos irmãos, dormia sempre no meu travesseiro, encostado à minha cabeça. Como tenho bastante pelo na nuca, o meu aconchego capilar foi colmatando a saudade da pilosidade da sua anterior família.

Era engraçado… Por vezes, antes de eu adormecer, via-o enroscar-se dentro do meu sapato e de manhã, ao acordar, já estava novamente no meu travesseiro.

Passado pouco tempo, descobrimos que estava cheio de pulgas, mas como tinha pouco mais que dois meses, tivemos de esperar até que completasse três meses, para lhe podermos dar um banho desparasitante. Bolas! Como o bicho sofreu naquele banho! Miava de choro e olhava para mim perguntando – porque me estás a fazer isto? Depois de seco e já sem pulgas, lá se recompôs. Mas ficou um pouco avesso a contactos nesse dia.

Jeremias foi crescendo e a sua personalidade ia-se revelando aos poucos. Era um gato pachorrento e dócil, embora muito brincalhão. Com enormes bigodes brancos e seu longo pelo lustroso, preto no dorso e branco no ventre. As suas patas eram todas negras, à excepção de uma que tinha manchas cor-de-rosa nalguns dedos e em parte da “almofada” que lhes amortece os saltos e quedas.

Gostava muito de se “sentar” na estante que estava por baixo da janela do meu quarto. Ficava a olhar lá para fora, esperando paciente que alguém viesse e abrisse um pouco a janela. Uma pequena fresta era suficiente para  enfiar a sua patita, afastando um pouco o vidro, esgueirando-se de seguida para a varanda do décimo andar.

Normalmente não havia mal nisso, bastava que alguém estivesse atento e  chamasse, para o fazer regressar do seu passeio pelos telhados. Este passeio era a sua ilusão de liberdade. De facto, a comida, a cama quente e todos os mimos que a nossa família lhe dava, tinham um preço alto – a sua solidão e o celibato no alto daquele prédio de dez andares. Apesar de haver um edifício contíguo com a mesma altura, era raro Jeremias aventurar-se para esse lugar desconhecido, onde as máquinas do ar condicionado e as dos elevadores faziam barulhos estranhos a toda a hora.

Excepto uma noite em que regressei já tarde a casa, depois de ter estado a trabalhar num bar.

Estava estoirado, literalmente a dormir em pé, mas mesmo assim apercebi-me que o gato não estava deitado no lugar habitual – a minha cama. Espreitei a janela e reparei que estava um pouco mais aberta do que era habitual. Saí para a varanda e chamei-o. Nada. Voltei a chamar vezes sem conta e nada. Naquela madrugada, não tive outro remédio senão reunir as poucas forças que me restavam, para me transformar também num felino, percorrendo os telhados em busca de Jeremias. Avançava cautelosamente mas, o meu chamado não obtinha resposta.

E avancei até passar a fronteira do meu telhado para o terraço do edifício vizinho, dando de cara com os caixotes do ar condicionado e dos ascensores. Era verão, estava uma noite quente, iluminada por alguns astros que resplandeciam no céu. Teimavam em conquistar o seu lugar na aura da noite, dominada pelos néons citadinos.

A primeira busca em território alheio revelou-se infrutífera. Entretanto regressei por outro caminho ao nosso telhado, mas… nada. Estava a ficar desesperado, pois anteriormente, já havia tido um gato que “estranha e misteriosamente” havia caído do telhado, no decurso do período das obras de construção do edifício vizinho.

Exausto e desesperado, decidi-me a fazer uma última vistoria ao topo da torre vizinha. Com toda a concentração que se consegue após 24 horas sem dormir, fui perscrutando todos os pequenos cantos e orifícios onde coubesse um gato e de repente, vi dois pequenos círculos brilhando no escuro da noite!

Após, com muito jeito e paciência, o conseguir tirar debaixo de um dos aparelhos de ar condicionado, embrulhei-o num manto e prossegui a operação de resgate. Acreditem, não é fácil transportar no colo, pelos terraços e telhados de duas torres de dez andares, um gato assustado, rijo como uma pedra e pronto a espetar garras e dentes a qualquer momento. Mas enfim, acabámos por chegar ambos sãos e salvos a casa e lá fomos, finalmente, dormir!

Algumas semanas mais tarde, acabei por perceber a razão das peregrinações nocturnas de Jeremias. Acordado por um miado que não reconhecia, levantei-me e procurei a origem do som. Sentado em cima da mesa da cozinha, o nosso gato miava de olhos fixos na gata que, miando também, se encontrava à sua frente do outro lado do vidro da porta da varanda. Como diabo teria o bicho conseguido chegar ali? De onde teria vindo?

Soubemos nesse momento que, para Jeremias, havia chegado a hora de por fim ao celibato. Com medo de o perder, redobrámos as atenções tentando evitar a sua fuga, em busca da companheira. Passado alguns dias, não se vislumbravam mais sinais da gata e Jeremias parecia bastante mais calmo. Se ele chegou ou não a acasalar, é para nós uma incógnita.

Enfim, poderia passar aqui o resto da tarde, contando-vos um sem número de histórias dos momentos que partilhei com ele, das vezes que acordei de madrugada para lhe dar a medicação quando esteve doente, do susto de morte que um amigo meu apanhou, quando Jeremias se esgueirou como um fantasma para o seu lado, enquanto ele lia um livro, mas deixemos isso para outra altura.

Há cerca de dez anos atrás, quando “juntei os trapinhos” o gato acabou por ficar com os meus pais. Dessa forma Jeremias não ficaria sozinho todo o dia e não teria que se adaptar a um novo lar. Para além disso, a Catarina não gosta de gatos.

Via-o sempre que ia a casa dos meus pais, o que acontecia com frequência. Nos primeiros tempos ele procurava-me sempre e eu fazia-lhe muitos mimos. Mas pouco a pouco, tal como as letras num papel de “fac-simile” tudo isso se foi desvanecendo. Fomo-nos distanciando. Sobretudo após o nascimento do Pedro.

A minha vida transformou-se num autêntico contra-relógio e deixei de ter tempo para sequer olhar para o gato. Quando por vezes, os meus pais iam de férias e eu tinha que o ir alimentar e tratar da higiene da sua latrina, ele ficava a dormir e já nem se dava ao trabalho de aparecer.

Há dois anos atrás, fruto da sua idade já avançada, dada a impossibilidade de manter uma higiene cuidada como é hábito nos gatos, apareceu-lhe um fungo no pelo e na pele. E lá fui eu, uma vez que apesar de tudo, era o único capaz de o enfiar na gaiola de transporte.

Porém, ninguém conseguiria adivinhar o que se passou no consultório do veterinário. O gato, já mais do que octagenário, ao dar por ele num ambiente estranho, rodeado de pessoas estranhas, fez sair lá de dentro o felino que havia andado escondido quase toda a sua vida. Á minha frente estava um jovem gato selvagem, ansioso por morder e rasgar todo o obstáculo que se interpusesse entre ele e a saída daquele lugar maldito. Saltou e voou, subindo a escada desde a sala da tosquia até ao pequeno hall de entrada, à porta do consultório, com tempo ainda para um pequeno raide à sala de espera. Urinou um pouco por todo o lado e só depois de muita luta, lhe foi possível aplicar um sedativo que finalmente o acalmou, permitindo prosseguir com o tratamento.

Isto há apenas dois anos… e ainda há dois ou três meses atrás os meus pais me diziam que ele estava muito bem, que se fartava de comer e dormir…

Enfim, no nascimento e na morte somos todos iguais – racionais e irracionais – ricos ou pobres.

Gostava de saber se, do alto da sua sabedoria de ancião, Jeremias – O gato que gostava de beber o seu cafezinho, fazendo-nos por vezes companhia no final das refeições – se sente grato pela vida que levou. Ou se, em contrapartida, teria preferido uma vida com menos conforto, mais breve, mas plena de liberdade e outro tipo de peripécias.

Camarada Jeremias, desejo-te uma boa jornada até ao paraíso! E não te esqueças das palavras que Corto proferiu, nesse lugar mágico que é Veneza:

“No Jardim do Éden havia de tudo: fígado de aves, rinzinhos, carne picada, peixinhos vermelhos e malgas de leite.” Hugo Pratt na “Fábula de Veneza”

Nunca te esquecerei!
 

quarta-feira, 7 de maio de 2014

PROFECIA


LUAS DE SANGUE

Em meados do passado mês de Abril e durante três noites seguidas, assisti curioso na minha varanda, ao nascimento de uma lua-cheia diferente... Para além de enorme, esta lua nascia vermelha. Curioso como sou, decidi investigar e rapidamente descobri que, pese embora o fenómeno não tivesse sido visível em Portugal (a lua já se tinha posto) ocorreu no passado dia 15 de Abril um eclipse lunar que deixou a lua "vermelho sangue". Para além deste, entre 2014 e 2015 irão ocorrer mais três. O próximo terá lugar a 8 de Outubro, mas também não será visível em terras lusas.

Segundo informação da NASA, em menos de um ano e meio, a Lua irá voltar a ficar "ensanguentada" mais três vezes, todas elas em feriados judaicos, conforme sucedeu no passado 15 Abril, dia em que teve início o "Pêssach", que comemora a libertação do povo judeu da escravidão do Egipto.

Este fenómeno astronómico, conjunto de quatro eclipses totais da Lua, que ocorrem numa sequência de dois anos, é conhecido por "tétrade" e  deu já origem à publicação de vários livros, a maior parte deles citando uma passagem da Bíblia, onde é feita menção à Lua a transformar-se em sangue: “O sol converter-se-à em trevas, e a lua em sangue, antes do grande e terrível dia do Senhor“, Joel 2:31.

Há quem refira que também no Novo Testamento se pode ler idêntica profecia.

Entre as inúmeras publicações e as variadíssimas referências ao fenómeno na Internet, destaca-se a interpretação do pastor do Texas "John Hagee", cujo livro intitulado “Quatro Luas de Sangue: Alguma Coisa Vai Mudar“ tem estado no topo de vendas do The New York Times e do USA Today, para além de ter ficado durante 152 dias no top 100 de livros da Amazon. 

Este pastor, baseando-se nos factos já ocorridos no decurso de tétrades - em 1492 os Judeus foram expulsos de Espanha e Cristovão Colombo descobriu a América, dando-lhes assim um lugar para onde ir; em 1948 "nasceu" o estado de Israel e finalmente, em 1967, Israel venceu a "guerra dos seis dias", reconquistando a mítica Jerusalém - profetiza que "Israel vai entrar numa enorme batalha, denominada Armageddon, e que Jesus vai regressar à Terra". Segundo Hagee, "esta é a altura em que nos devemos começar a preparar para o fim do mundo como o conhecemos". 

Durante cerca de 300 anos, entre 1600 e 1900, não ocorreram tétrades.

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LUA ESCARLATE

A lua desperta no horizonte
Bocejando
Solta uma língua de fogo
Cobrindo a noite com saliva
Voluptuosamente espessa

Espreguiça-se
Soltando os braços
Luar quente no seio da alma
Derrete o gelo
Pálido desconsolo recolhido na rotina diurna

Porque não é de noite, sempre?!
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PROFECIA

“O aviso dos mortos chegou no clarão da madrugada!”
Todos se haviam refugiado nas Igrejas e aquele breu, que há dois dias não se levantava, deixara-se finalmente vencer pela contagiante luz da aurora.
Foi nesse momento peculiar que aquela estranha figura chegou à cidade. Era um ser deveras insólito. Possuía uma espécie de cauda feita de madeira, que utilizava como uma terceira perna. Deslocava-se de modo similar a um perneta com muletas, mas de mãos livres. Sempre que parava, era impressionante o seu equilíbrio e estabilidade – uma verdadeira “mesa de três pernas”.

Dadas as circunstâncias, este bizarro aparecimento foi de imediato imerso num contexto fantástico, sendo de pronto estabelecida pelas gentes uma ligação entre o que acabara de acontecer e a sua chegada.
Várias teorias foram aventadas, mas uma dentre estas acabou por se tornar dominante. Segundo a mesma, tratar-se-ia do fantasma do antigo coveiro e guarda do cemitério. Este havia morrido ao ser enterrado por acidente, após desmaiar de bêbado para dentro da cova que acabara de abrir, no decurso das cerimónias fúnebres de uma ilustre figura pública de Boa Esperança.

Ninguém soube explicar ao certo como a coisa ocorrera e porque motivo, após constatada a ausência do coveiro, ninguém se lembrou de olhar bem para dentro da cova, antes de começar a cobrir o caixão de terra. O facto é que vários dias depois, constatado o seu inexplicável desaparecimento, alguém finalmente sugeriu abrir a dita cova e lá encontraram o seu cadáver.
Este coveiro, para além de bêbado, era meio coxo e andava sempre apoiado numa velha bengala de madeira, que possuía uma pega larga e chata, onde ele muitas vezes encostava o traseiro para se apoiar, enquanto descansava e bebia um trago de “grogue”, por ele fabricado.

As mentes férteis de Boa Esperança conceberam então no seu imaginário, dada a semelhança de semblante e estatura, que o tal estranho seria a alma penada deste pobre coitado, regressada do purgatório para se vingar de todos nós, levando-nos um a um para dentro da cova, onde abrindo a tampa do caixão, nós empurraria “porta” adentro, rumo às entranhas do Inferno.
A presença daquela criatura assinalava assim, para todo o cidadão deste nosso lugarejo, a eminência do juízo final.

A verdade é que naquela madrugada e manhã, após dois dias inteiros feitos noite escura, as inquietações eram muitas e qualquer facto menos habitual, era susceptível de fazer germinar várias interpretações, todas elas contendo profecias do eminente fim dos tempos.
Apesar da intranquilidade latente, o dia acabou por decorrer sem sobressaltos e como é normal, quando o sol se pôs a dormir, chegou a noite.

O estranho, que andara desaparecido quase todo o dia, apareceu enfim novamente no bar das Almôndegas, onde costumo tomar café depois de jantar. Cravei-lhe aí, pela primeira vez, o meu olhar. Vestia uma camisola de gola alta vermelha, de malha, com uma enorme estrela branca no peito. As costas cobertas por um manto azul celeste, cujo tecido não pude identificar. Do tronco para baixo, presos à cintura por um pedaço de corda de amarra, uns corsários de fazenda vulgarucha, com riscas vermelhas verticais, sobre um fundo cinzento antracite.
Olhando para os seus pés, dir-se-ia ter subtraído os sapatos de Aladino. Não usava chapéu e era calvo à excepção de um pequeno tufo violeta no alto do cocuruto. As suas sobrancelhas pelo contrário, eram fartas e espessas, de um azul escuro semelhante ao dos seus olhos, que fazia lembrar a cor do mar em dias de tempestade. Possuía um rosto algo sóbrio, embora inexpressivo, pálido e de traços ligeiros, mas sereno, não deixando transparecer qualquer tipo de tensão, ou conflito interior.

Ao olhar ao meu redor, o barómetro de apreensão disparou o alarme, tal era a tensão latente nos rostos dos meus conterrâneos. Os lábios imóveis do estranho, haviam-se transformado no seu único horizonte. O rebanho fixava hipnotizado, o seu pastor, ansiando pela profecia.
Os corpos, transpirando desespero, aguardavam as palavras funestas que os fariam desfalecer, de joelhos quebrados ante o poder das trevas. As pessoas à minha volta, espelhavam a resignação de quem foi abandonado pelo destino.

Quando os seus lábios finalmente se moveram, soltando uma voz rouca com sotaque galego, todo o bar estremeceu… mas em vão. O estranho havia pedido um scotch!   
Quebrada a barreira do silêncio, os mais curiosos foram-se aproximando dele, até que o mais arguto resolveu questionar. O sujeito educadamente furtou-se à conversa, argumentando que estava já atrasado para um encontro. Num golpe, verteu o líquido goela abaixo e saiu porta fora, sem mais.

Toda esta cena se passou num segundo e os presentes nada mais puderam fazer, a não ser continuar a conjecturar sobre as possíveis ligações entre o que se havia passado dois dias atrás e a chegada deste sujeito fenomenal.
Entretanto, um após outro, os dias sucederam-se na azáfama da rotina, ocupando as mentes mais férteis com os afazeres do dia-a-dia, privando de alimento, a especulação e a quadrilhice.

Volvida uma semana, apenas algumas comadres falavam ainda do assunto, porquanto nada de mais importante lhes ocupava o raciocínio e a imaginação.
O estrangeiro tornara-se frequentador habitual do bar e acabara por ceder à tentação da conversa com os locais, embora a sua resposta às perguntas mais intrusivas fosse sempre a mesma – um ligeiro sorriso.

Envolvidos na teia das suas palavras, ouvíamos como uma agradável música de fundo, a filosofia de uma civilização alienígena, transferida de um universo paralelo, ínfima partícula de um cosmos desconhecido.
Apesar da sua voz rude e aparência grosseira, possuía um à vontade e uma elegância de gestos cativante, certamente alimentadas pelo adubo da intimidade com gentes e costumes diversos, desvendados os segredos que lhe permitem transportar a bagagem das estrelas, onde se encontra gravada a história das civilizações.

Mais alguns dias passaram, até que o viajante anunciou ser a sua última noite na cidade, ao pagar uma rodada a todos os presentes. Ninguém se atreveu a perguntar como iria ele embora, uma vez que sempre se havia escusado a esclarecer de que forma chegara.
Algum tempo após a sua partida, constatou-se que enquanto permaneceu entre nós, os animais estiveram estranhamente calmos sem qualquer alarido ou manifestação quezilenta. Já as crianças, exibiram um comportamento exemplar e um aproveitamento escolar extraordinário, enquanto os adultos esqueceram de forma inconsciente, as sua desavenças e problemas, sentindo-se plenos com a vida e relaxados na essência do ser.

Só após semanas de alguma turbulência, em que tudo voltou efectivamente, ao normal, alguns de nós se aperceberam dessa estranha coincidência.
Com o passar dos anos, vieram novos estrangeiros e ocorreram novos eventos insólitos em Boa Esperança. Hoje em dia já poucos falam no assunto.

Eu recordarei sempre. Embora esteja certa que, para o meu marido, esta criança é inequivocamente o seu filho, sempre que a observo adivinho nela a semente de algo mais que um simples homem.