sábado, 21 de junho de 2014

JEREMIAS


JEREMIAS

O meu pai levou hoje o gato ao veterinário. O bicho ficou internado. Jeremias conta já cerca de 21 anos de idade. Dos nossos, pois de acordo com algumas tabelas de equivalência que o “Doctor Google” me disponibilizou, Jeremias é um felino centenário, ou alguma coisa lá perto…

Está anémico, desidratado e pesa cerca de dois quilos e meio – está muito magro. Um pouco a medo, o meu pai foi-me dizendo que ele já não vai sair de lá…

Passaram mais de vinte anos e no entanto, como é nítida a memória do dia em que o fui buscar!

A gata de uma amiga havia tido uma ninhada no final do mês de Abril, mais precisamente no dia 30 de Abril. O cão (sim, tinha uma gata e um cão) fora o parteiro e ajudara a lamber os gatinhos, mal saíram do ventre da progenitora. Fantástico não é?

A casa da amiga ficava na Brandoa. Tentei reconhecer o sítio, se não fosse pelas parcas memórias (saí da Brandoa quando tinha três anos) seria pela meia dúzia de fotos que a minha família conservava daquele local. Mas nada disso ajudou. Aquele lugar era completamente estranho.

Entramos em casa da amiga e deparamos com uma ninhada de quatro gatinhos de um mês, a mãe gata e o cão parteiro.

Fui informado que inicialmente eram cinco, mas um já havia sido adoptado. Para facilitar a escolha, consciente que os mais bonitos seriam teoricamente mais “adoptáveis”, estava decidido a optar pelo bicho que desse menos nas vistas.

Mas afinal fui eu o escolhido! Um dos gatitos prendeu as suas pequenas garras na minha camisola e a partir daí não mais me largou. Mesmo quando, com muita dificuldade, lograva pousá-lo um pouco no chão, não tardava a arranjar forma de se pendurar novamente em mim.

Foi assim que Jeremias viajou da Brandoa até Lisboa e ganhou novos donos e um novo lar. Inicialmente, talvez por sentir falta da mãe, do tio e dos irmãos, dormia sempre no meu travesseiro, encostado à minha cabeça. Como tenho bastante pelo na nuca, o meu aconchego capilar foi colmatando a saudade da pilosidade da sua anterior família.

Era engraçado… Por vezes, antes de eu adormecer, via-o enroscar-se dentro do meu sapato e de manhã, ao acordar, já estava novamente no meu travesseiro.

Passado pouco tempo, descobrimos que estava cheio de pulgas, mas como tinha pouco mais que dois meses, tivemos de esperar até que completasse três meses, para lhe podermos dar um banho desparasitante. Bolas! Como o bicho sofreu naquele banho! Miava de choro e olhava para mim perguntando – porque me estás a fazer isto? Depois de seco e já sem pulgas, lá se recompôs. Mas ficou um pouco avesso a contactos nesse dia.

Jeremias foi crescendo e a sua personalidade ia-se revelando aos poucos. Era um gato pachorrento e dócil, embora muito brincalhão. Com enormes bigodes brancos e seu longo pelo lustroso, preto no dorso e branco no ventre. As suas patas eram todas negras, à excepção de uma que tinha manchas cor-de-rosa nalguns dedos e em parte da “almofada” que lhes amortece os saltos e quedas.

Gostava muito de se “sentar” na estante que estava por baixo da janela do meu quarto. Ficava a olhar lá para fora, esperando paciente que alguém viesse e abrisse um pouco a janela. Uma pequena fresta era suficiente para  enfiar a sua patita, afastando um pouco o vidro, esgueirando-se de seguida para a varanda do décimo andar.

Normalmente não havia mal nisso, bastava que alguém estivesse atento e  chamasse, para o fazer regressar do seu passeio pelos telhados. Este passeio era a sua ilusão de liberdade. De facto, a comida, a cama quente e todos os mimos que a nossa família lhe dava, tinham um preço alto – a sua solidão e o celibato no alto daquele prédio de dez andares. Apesar de haver um edifício contíguo com a mesma altura, era raro Jeremias aventurar-se para esse lugar desconhecido, onde as máquinas do ar condicionado e as dos elevadores faziam barulhos estranhos a toda a hora.

Excepto uma noite em que regressei já tarde a casa, depois de ter estado a trabalhar num bar.

Estava estoirado, literalmente a dormir em pé, mas mesmo assim apercebi-me que o gato não estava deitado no lugar habitual – a minha cama. Espreitei a janela e reparei que estava um pouco mais aberta do que era habitual. Saí para a varanda e chamei-o. Nada. Voltei a chamar vezes sem conta e nada. Naquela madrugada, não tive outro remédio senão reunir as poucas forças que me restavam, para me transformar também num felino, percorrendo os telhados em busca de Jeremias. Avançava cautelosamente mas, o meu chamado não obtinha resposta.

E avancei até passar a fronteira do meu telhado para o terraço do edifício vizinho, dando de cara com os caixotes do ar condicionado e dos ascensores. Era verão, estava uma noite quente, iluminada por alguns astros que resplandeciam no céu. Teimavam em conquistar o seu lugar na aura da noite, dominada pelos néons citadinos.

A primeira busca em território alheio revelou-se infrutífera. Entretanto regressei por outro caminho ao nosso telhado, mas… nada. Estava a ficar desesperado, pois anteriormente, já havia tido um gato que “estranha e misteriosamente” havia caído do telhado, no decurso do período das obras de construção do edifício vizinho.

Exausto e desesperado, decidi-me a fazer uma última vistoria ao topo da torre vizinha. Com toda a concentração que se consegue após 24 horas sem dormir, fui perscrutando todos os pequenos cantos e orifícios onde coubesse um gato e de repente, vi dois pequenos círculos brilhando no escuro da noite!

Após, com muito jeito e paciência, o conseguir tirar debaixo de um dos aparelhos de ar condicionado, embrulhei-o num manto e prossegui a operação de resgate. Acreditem, não é fácil transportar no colo, pelos terraços e telhados de duas torres de dez andares, um gato assustado, rijo como uma pedra e pronto a espetar garras e dentes a qualquer momento. Mas enfim, acabámos por chegar ambos sãos e salvos a casa e lá fomos, finalmente, dormir!

Algumas semanas mais tarde, acabei por perceber a razão das peregrinações nocturnas de Jeremias. Acordado por um miado que não reconhecia, levantei-me e procurei a origem do som. Sentado em cima da mesa da cozinha, o nosso gato miava de olhos fixos na gata que, miando também, se encontrava à sua frente do outro lado do vidro da porta da varanda. Como diabo teria o bicho conseguido chegar ali? De onde teria vindo?

Soubemos nesse momento que, para Jeremias, havia chegado a hora de por fim ao celibato. Com medo de o perder, redobrámos as atenções tentando evitar a sua fuga, em busca da companheira. Passado alguns dias, não se vislumbravam mais sinais da gata e Jeremias parecia bastante mais calmo. Se ele chegou ou não a acasalar, é para nós uma incógnita.

Enfim, poderia passar aqui o resto da tarde, contando-vos um sem número de histórias dos momentos que partilhei com ele, das vezes que acordei de madrugada para lhe dar a medicação quando esteve doente, do susto de morte que um amigo meu apanhou, quando Jeremias se esgueirou como um fantasma para o seu lado, enquanto ele lia um livro, mas deixemos isso para outra altura.

Há cerca de dez anos atrás, quando “juntei os trapinhos” o gato acabou por ficar com os meus pais. Dessa forma Jeremias não ficaria sozinho todo o dia e não teria que se adaptar a um novo lar. Para além disso, a Catarina não gosta de gatos.

Via-o sempre que ia a casa dos meus pais, o que acontecia com frequência. Nos primeiros tempos ele procurava-me sempre e eu fazia-lhe muitos mimos. Mas pouco a pouco, tal como as letras num papel de “fac-simile” tudo isso se foi desvanecendo. Fomo-nos distanciando. Sobretudo após o nascimento do Pedro.

A minha vida transformou-se num autêntico contra-relógio e deixei de ter tempo para sequer olhar para o gato. Quando por vezes, os meus pais iam de férias e eu tinha que o ir alimentar e tratar da higiene da sua latrina, ele ficava a dormir e já nem se dava ao trabalho de aparecer.

Há dois anos atrás, fruto da sua idade já avançada, dada a impossibilidade de manter uma higiene cuidada como é hábito nos gatos, apareceu-lhe um fungo no pelo e na pele. E lá fui eu, uma vez que apesar de tudo, era o único capaz de o enfiar na gaiola de transporte.

Porém, ninguém conseguiria adivinhar o que se passou no consultório do veterinário. O gato, já mais do que octagenário, ao dar por ele num ambiente estranho, rodeado de pessoas estranhas, fez sair lá de dentro o felino que havia andado escondido quase toda a sua vida. Á minha frente estava um jovem gato selvagem, ansioso por morder e rasgar todo o obstáculo que se interpusesse entre ele e a saída daquele lugar maldito. Saltou e voou, subindo a escada desde a sala da tosquia até ao pequeno hall de entrada, à porta do consultório, com tempo ainda para um pequeno raide à sala de espera. Urinou um pouco por todo o lado e só depois de muita luta, lhe foi possível aplicar um sedativo que finalmente o acalmou, permitindo prosseguir com o tratamento.

Isto há apenas dois anos… e ainda há dois ou três meses atrás os meus pais me diziam que ele estava muito bem, que se fartava de comer e dormir…

Enfim, no nascimento e na morte somos todos iguais – racionais e irracionais – ricos ou pobres.

Gostava de saber se, do alto da sua sabedoria de ancião, Jeremias – O gato que gostava de beber o seu cafezinho, fazendo-nos por vezes companhia no final das refeições – se sente grato pela vida que levou. Ou se, em contrapartida, teria preferido uma vida com menos conforto, mais breve, mas plena de liberdade e outro tipo de peripécias.

Camarada Jeremias, desejo-te uma boa jornada até ao paraíso! E não te esqueças das palavras que Corto proferiu, nesse lugar mágico que é Veneza:

“No Jardim do Éden havia de tudo: fígado de aves, rinzinhos, carne picada, peixinhos vermelhos e malgas de leite.” Hugo Pratt na “Fábula de Veneza”

Nunca te esquecerei!