JEREMIAS
O meu pai levou hoje o gato ao veterinário. O bicho
ficou internado. Jeremias conta já cerca de 21 anos de idade. Dos nossos, pois
de acordo com algumas tabelas de equivalência que o “Doctor Google” me
disponibilizou, Jeremias é um felino centenário, ou alguma coisa lá perto…
Está anémico, desidratado e pesa cerca de dois
quilos e meio – está muito magro. Um pouco a medo, o meu pai foi-me dizendo que
ele já não vai sair de lá…
Passaram mais de vinte anos e no entanto, como é
nítida a memória do dia em que o fui buscar!
A gata de uma amiga havia tido uma ninhada no final
do mês de Abril, mais precisamente no dia 30 de Abril. O cão (sim, tinha uma
gata e um cão) fora o parteiro e ajudara a lamber os gatinhos, mal saíram do
ventre da progenitora. Fantástico não é?
A casa da amiga ficava na Brandoa. Tentei
reconhecer o sítio, se não fosse pelas parcas memórias (saí da Brandoa quando
tinha três anos) seria pela meia dúzia de fotos que a minha família conservava
daquele local. Mas nada disso ajudou. Aquele lugar era completamente estranho.
Entramos em casa da amiga e deparamos com uma
ninhada de quatro gatinhos de um mês, a mãe gata e o cão parteiro.
Fui informado que inicialmente eram cinco, mas um
já havia sido adoptado. Para facilitar a escolha, consciente que os mais
bonitos seriam teoricamente mais “adoptáveis”, estava decidido a optar pelo
bicho que desse menos nas vistas.
Mas afinal fui eu o escolhido! Um dos gatitos
prendeu as suas pequenas garras na minha camisola e a partir daí não mais me
largou. Mesmo quando, com muita dificuldade, lograva pousá-lo um pouco no chão,
não tardava a arranjar forma de se pendurar novamente em mim.
Foi assim que Jeremias viajou da Brandoa até Lisboa
e ganhou novos donos e um novo lar. Inicialmente, talvez por sentir falta da
mãe, do tio e dos irmãos, dormia sempre no meu travesseiro, encostado à minha cabeça.
Como tenho bastante pelo na nuca, o meu aconchego capilar foi colmatando a
saudade da pilosidade da sua anterior família.
Era engraçado… Por vezes, antes de eu adormecer,
via-o enroscar-se dentro do meu sapato e de manhã, ao acordar, já estava novamente
no meu travesseiro.
Passado pouco tempo, descobrimos que estava cheio de
pulgas, mas como tinha pouco mais que dois meses, tivemos de esperar até que
completasse três meses, para lhe podermos dar um banho desparasitante. Bolas! Como
o bicho sofreu naquele banho! Miava de choro e olhava para mim perguntando –
porque me estás a fazer isto? Depois de seco e já sem pulgas, lá se recompôs. Mas
ficou um pouco avesso a contactos nesse dia.
Jeremias foi crescendo e a sua personalidade ia-se
revelando aos poucos. Era um gato pachorrento e dócil, embora muito brincalhão.
Com enormes bigodes brancos e seu longo pelo lustroso, preto no dorso e
branco no ventre. As suas patas eram todas negras, à excepção de uma que tinha
manchas cor-de-rosa nalguns dedos e em parte da “almofada” que lhes amortece os
saltos e quedas.
Gostava muito de se “sentar” na estante que estava
por baixo da janela do meu quarto. Ficava a olhar lá para fora, esperando
paciente que alguém viesse e abrisse um pouco a janela. Uma pequena fresta era
suficiente para enfiar a sua patita, afastando
um pouco o vidro, esgueirando-se de seguida para a varanda do décimo andar.
Normalmente não havia mal nisso, bastava que alguém
estivesse atento e chamasse, para o
fazer regressar do seu passeio pelos telhados. Este passeio era a sua ilusão de
liberdade. De facto, a comida, a cama quente e todos os mimos que a nossa
família lhe dava, tinham um preço alto – a sua solidão e o celibato no alto
daquele prédio de dez andares. Apesar de haver um edifício contíguo com a mesma
altura, era raro Jeremias aventurar-se para esse lugar desconhecido, onde as
máquinas do ar condicionado e as dos elevadores faziam barulhos estranhos a
toda a hora.
Excepto uma noite em que regressei já tarde a casa,
depois de ter estado a trabalhar num bar.
Estava estoirado, literalmente a dormir em pé, mas
mesmo assim apercebi-me que o gato não estava deitado no lugar habitual – a minha
cama. Espreitei a janela e reparei que estava um pouco mais aberta do que era habitual.
Saí para a varanda e chamei-o. Nada. Voltei a chamar vezes sem conta e nada. Naquela
madrugada, não tive outro remédio senão reunir as poucas forças que me restavam,
para me transformar também num felino, percorrendo os telhados em busca de
Jeremias. Avançava cautelosamente mas, o meu chamado não obtinha resposta.
E avancei até passar a fronteira do meu telhado
para o terraço do edifício vizinho, dando de cara com os caixotes do ar
condicionado e dos ascensores. Era verão, estava uma noite quente, iluminada por
alguns astros que resplandeciam no céu. Teimavam em conquistar o seu lugar na
aura da noite, dominada pelos néons citadinos.
A primeira busca em território alheio revelou-se
infrutífera. Entretanto regressei por outro caminho ao nosso telhado, mas…
nada. Estava a ficar desesperado, pois anteriormente, já havia tido um gato que
“estranha e misteriosamente” havia caído do telhado, no decurso do período das
obras de construção do edifício vizinho.
Exausto e desesperado, decidi-me a fazer uma última
vistoria ao topo da torre vizinha. Com toda a concentração que se consegue após
24 horas sem dormir, fui perscrutando todos os pequenos cantos e orifícios onde
coubesse um gato e de repente, vi dois pequenos círculos brilhando no escuro da
noite!
Após, com muito jeito e paciência, o conseguir
tirar debaixo de um dos aparelhos de ar condicionado, embrulhei-o num manto e
prossegui a operação de resgate. Acreditem, não é fácil transportar no colo, pelos
terraços e telhados de duas torres de dez andares, um gato assustado, rijo como
uma pedra e pronto a espetar garras e dentes a qualquer momento. Mas enfim,
acabámos por chegar ambos sãos e salvos a casa e lá fomos, finalmente, dormir!
Algumas semanas mais tarde, acabei por perceber a
razão das peregrinações nocturnas de Jeremias. Acordado por um miado que não
reconhecia, levantei-me e procurei a origem do som. Sentado em cima da mesa da
cozinha, o nosso gato miava de olhos fixos na gata que, miando também, se
encontrava à sua frente do outro lado do vidro da porta da varanda. Como diabo
teria o bicho conseguido chegar ali? De onde teria vindo?
Soubemos nesse momento que, para Jeremias, havia
chegado a hora de por fim ao celibato. Com medo de o perder, redobrámos as atenções
tentando evitar a sua fuga, em busca da companheira. Passado alguns dias, não
se vislumbravam mais sinais da gata e Jeremias parecia bastante mais calmo. Se
ele chegou ou não a acasalar, é para nós uma incógnita.
Enfim, poderia passar aqui o resto da tarde,
contando-vos um sem número de histórias dos momentos que partilhei com ele, das
vezes que acordei de madrugada para lhe dar a medicação quando esteve doente,
do susto de morte que um amigo meu apanhou, quando Jeremias se esgueirou como
um fantasma para o seu lado, enquanto ele lia um livro, mas deixemos isso para
outra altura.
Há cerca de dez anos atrás, quando “juntei os
trapinhos” o gato acabou por ficar com os meus pais. Dessa forma Jeremias não
ficaria sozinho todo o dia e não teria que se adaptar a um novo lar. Para além
disso, a Catarina não gosta de gatos.
Via-o sempre que ia a casa dos meus pais, o que
acontecia com frequência. Nos primeiros tempos ele procurava-me sempre e eu
fazia-lhe muitos mimos. Mas pouco a pouco, tal como as letras num papel de “fac-simile”
tudo isso se foi desvanecendo. Fomo-nos distanciando. Sobretudo após o
nascimento do Pedro.
A minha vida transformou-se num autêntico
contra-relógio e deixei de ter tempo para sequer olhar para o gato. Quando por
vezes, os meus pais iam de férias e eu tinha que o ir alimentar e tratar da
higiene da sua latrina, ele ficava a dormir e já nem se dava ao trabalho de
aparecer.
Há dois anos atrás, fruto da sua idade já avançada,
dada a impossibilidade de manter uma higiene cuidada como é hábito nos gatos,
apareceu-lhe um fungo no pelo e na pele. E lá fui eu, uma vez que apesar de
tudo, era o único capaz de o enfiar na gaiola de transporte.
Porém, ninguém conseguiria adivinhar o que se
passou no consultório do veterinário. O gato, já mais do que octagenário, ao dar
por ele num ambiente estranho, rodeado de pessoas estranhas, fez sair lá de dentro
o felino que havia andado escondido quase toda a sua vida. Á minha frente
estava um jovem gato selvagem, ansioso por morder e rasgar todo o obstáculo que
se interpusesse entre ele e a saída daquele lugar maldito. Saltou e voou, subindo
a escada desde a sala da tosquia até ao pequeno hall de entrada, à porta do
consultório, com tempo ainda para um pequeno raide à sala de espera. Urinou um
pouco por todo o lado e só depois de muita luta, lhe foi possível aplicar um
sedativo que finalmente o acalmou, permitindo prosseguir com o
tratamento.
Isto há apenas dois anos… e ainda há dois ou três
meses atrás os meus pais me diziam que ele estava muito bem, que se fartava de
comer e dormir…
Enfim, no nascimento e na morte somos todos iguais –
racionais e irracionais – ricos ou pobres.
Gostava de saber se, do alto da sua sabedoria de
ancião, Jeremias – O gato que gostava de beber o seu cafezinho, fazendo-nos por
vezes companhia no final das refeições – se sente grato pela vida que levou. Ou
se, em contrapartida, teria preferido uma vida com menos conforto, mais breve,
mas plena de liberdade e outro tipo de peripécias.
Camarada Jeremias, desejo-te uma boa jornada até ao
paraíso! E não te esqueças das palavras que Corto proferiu, nesse lugar mágico
que é Veneza:
“No Jardim do Éden havia de tudo:
fígado de aves, rinzinhos, carne picada, peixinhos vermelhos e malgas de leite.”
Hugo Pratt na “Fábula
de Veneza”
Nunca te
esquecerei!